Nossa existência corporal é encarnada, ela não existe fora do corpo. Tarda a compreensão de “sermos um corpo”, ao invés de “termos um corpo”. Vivemos um misto de presença e ausência do corpo, talvez por isso a nossa consciência desta dimensão corpórea nos deixa desatentos às marcas que precisam ser vistas nos espaços institucionais: olhos ofuscados, lágrimas seguras por muito pouco (qualquer palavra e elas escapam no rosto), corpos tensos, vozes silenciadas, posturas cansadas e muito medo não-sadio.
Dowbor (2007) diz que fica às vezes imaginando que tipos de marcas cada um de nós carrega no corpo, marcas estas que fazem, por exemplo, perdermos a liberdade e soltura de nossos movimentos. Segundo a autora, além da importância de aprendermos a ressignificar estas marcas, está a necessidade (difícil para alguns) de ter coragem de reconhecer tais marcas, de localizá-las, de enfrentá-las – como sombras das quais tendemos a fugir. Como fomos marcados pelo medo?, questiona e responde a mesma autora: pelo medo não-sadio fomos marcados pelo recorrente imobilismo e insistente recuo; diferentemente do medo sadio, que nos impulsiona à permanente ação e nos coloca em movimento.
Como os medos não-sadios invadiram os nossos corpos? Como a prepotência do outro, marcada em um corpo austero e autoritário, marcou uma possível submissão em nós? Como lidamos com estes nós sociais, tão presentes e tão marcantes…? Como somos marcados para determinada maneira de ser? Ser belo, ser inteligente, ser aceito, ser homem, ser mulher, ser bem sucedido. Quais marcas sociais se tornam as nossas marcas pessoais? O que carregamos em maior amplitude: as boas marcas, as marcas alegres? Ou insistimos em manter a marca das dores, dos lutos, dos sonhos não realizados? E como isso marca o nosso corpo? De que forma nossos pais e familiares foram marcados em seus corpos? Que nós carregaram?
Como aprendi com o educador social Antonio Carlos Gomes da Costa, podemos aprender pelo discurso das palavras ou pelo curso dos acontecimentos. Desde então opto sempre por uma experimentação sensível dos acontecimentos e busco, nas minhas aulas, que além dos conteúdos específicos, os estudantes também percebam suas marcas e seus nós.
Na reta final do semestre letivo de 2012, que apenas terminaria em fevereiro de 20131, fiquei bastante angustiada pelo visível cansaço e pela estranha exaustão que marcavam os corpos dos estudantes. Seriam decorrentes das noites sem dormir para terminar trabalhos e provas? Isso justificaria tamanha rigidez e, em alguns, uma gritante indignação? Lancei estas perguntas em nossos diálogos nas salas de aula e também perguntei a um grupo de estudantes que reuni pelo facebook. Questionei-os se percebiam que as marcas pessoais foram invadindo o espaço institucionalizado e vice-versa. Que as tristezas foram calando aqueles estudantes antes ativos, e que os medos foram afastando a anterior facilidade de atenção durante as aulas. Fizemos duas reuniões presenciais nas quais compartilhamos ideias para compor um espetáculo que os sensibilizasse e a outros estudantes a refletir sobre esta temática. Por que deixamos penetrar em nós tantas marcas negativas?
As marcas dos corpos que somos e os nossos nós foi o título escolhido para o 2º. Espetáculo Corpo2 que reuniu estudantes do IEFES, vinculados às disciplinas que ministro: Fundamentos Filosóficos da Educação Física (1ºSemestre), Fundamentos Sociológicos (2ºSemestre), Ética e Profissionalidade (3ºSemestre). Participaram também estudantes voluntários de outros semestres e convidados externos. Para assistir ao espetáculo foi preciso vendar os olhos, e assim permanecer até que fosse autorizada a retirada da venda. No escuro, cada pessoa foi mergulhando nas marcas que carrega, pelo menos, foi convidada a pensar sobre as marcas e os nós. O espetáculo aconteceu sem ensaio geral prévio, porque tudo foi produzido a partir das inquietudes comuns debatidas anteriormente. No cenário virtual as imagens convidaram o olhar a penetrar nos temas abordados. O público foi disposto nos 360 graus da sala onde se misturaram: dança, performances, música, voz, poemas, corpos.
Editei um vídeo-síntese dos registros do 2º Espetáculo Corpo, disponibilizado em ( CLIQUE AQUI PARA VER O VIDEO) no qual deixo expresso o convite para que outras pessoas desejem encarar as próprias marcas e desfazer seus nós.
Deixo ainda um segundo convite: estejamos alerta para que as nossas aulas não sejam locais de reincidentes marcas negativas, principalmente de medos não-sadios, sequer de nós que não se desatem jamais. Se quem educa realmente marca o corpo do outro, como afirma Dowbor (2007), que marcas você pretende (conscientemente) deixar?
Referência
DOWBOR, Fátima Freire. Quem educa marca o corpo do outro. São Paulo: Cortez, 2007.
Notas
[1] Devido à greve das Universidades Federais (luta pertinente e permanente pela qualidade do ensino superior público e não apenas por salários, como distorcidamente divulgou a mídia), o segundo semestre letivo de 2012 terminou apenas em fevereiro de 2013.
2 O 1º Espetáculo Corpo do IEFES aconteceu em 27/09/2012 e abordou o tema do corpo negado, excluído e dispensado no processo de ensino-aprendizagem.
Aos estudantes que criaram coletivamente este espetáculo, minha gratidão. Ao público que prestigiou, nosso eterno agradecimento.
Elenco: Axel Santiago, Deuziane Brito , Emanuel Cavalcante, Fabrício Bezerra, Gardênia Brito, Igor Gonçalves, Isabelle Bezerra, Jessica Almeida, Julia Milena , Klertianny Teixeira, Laila Frota, Thallysson Jardel, Tailan Ewerk, Patrícia Lima, Yury Dunga.
Equipe apoio: Alexandra Nobre , Isabelle Maria, Iara Gurgel, Iury Braga e Renee Caldas.
Produção dos vídeos-cenários: Juliana Barros e Yarick Ivens
Participações especiais: Mendes e Danilo (malabares) e Prof. José Holanda de Lima Neto (clown)
Tatiana Passos Zylberberg
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